Entrevista com Jorge Werneck
Pesquisador em Hidrologia e Recursos Hídricos na Empresa Brasileira de Agricultura e Pecuária (Embrapa), Jorge Werneck falou ao Ecodata Informa sobre a importância do Cerrado para os recursos hídricos brasileiros, os impactos causados pelo desmatamento do bioma e o papel do Governo e da sociedade nesse contexto.
Confira a entrevista.
Ecodata Informa: O que são Regiões Hidrográficas?
Jorge Werneck: Até o ano de 2003, o Brasil era subdividido em oito grandes bacias hidrográficas. A partir desse ano, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos aprovou uma divisão do território brasileiro em 12 grandes regiões hidrográficas. Porque o nome de regiões hidrográficas: porque em algumas delas você encontra mais de uma bacia dentro. Por exemplo, o litoral possui várias bacias não tão grandes e que deságuam no oceano, por isso que recebe o nome de região hidrográfica. Algumas regiões são bacias hidrográficas, como é o caso do São Francisco, Paraná e Paraguai.
Ecodata Informa: O que acontece com a água do bioma Cerrado?
Jorge Werneck: O Planalto Central brasileiro está localizado no bioma Cerrado. A região, como o próprio nome diz, é central e alta. Então ela acaba funcionando como se fosse um grande “guarda-chuva”, um grande reservatório que acaba participando da distribuição da água por todo o continente sul-americano, não só Brasil. Quando você pensa na bacia do Paraná e do Paraguai, por exemplo, e que nascem no Cerrado, está pensando em outros países que estão águas abaixo.
Das 12 regiões hidrográficas, oito são abastecidas por águas que vêm do Cerrado. Isso representa um grande percentual do território. As bacias do Paraná, Paraguai, Tocantins-Araguaia, do São Francisco, um pouco da bacia Amazônica e algumas bacias do Atlântico recebem águas do Cerrado.
Ecodata Informa: Qual a contribuição do Cerrado para as demais bacias hidrográficas do Brasil?
Jorge Werneck: Assim que eu cheguei para trabalhar na Embrapa Cerrados, em 2001, ouvia muito que “o Cerrado é o pai das águas do Brasil… É o berço das águas do Brasil… O grande reservatório das águas do Brasil.” Então uma das coisas que quis fazer foi quantificar, saber quanto o Cerrado é importante para cada uma dessas bacias e regiões hidrográficas.
Neste trabalho, peguei os limites do Cerrado e comparei a vazão que atravessa esses limites com a vazão que sai na foz das bacias. A partir disso cheguei a alguns valores interessantes: O Cerrado ocupa 47% da área da bacia do São Francisco e reponde por mais de 90% da água que passa na foz da bacia. Para a região hidrográfica do Tocantins-Araguaia, o Cerrado contribui com pouco mais de 60% da água que é gerada. Para a bacia do Tocantins-Araguaia, este valor chega a mais de 70%.
Na bacia do Paraná, cerca de 50% da foz brasileira também vem do Cerrado. A metade da vazão que passa em Itaipú é gerada no bioma Cerrado. Ou seja, 50% da energia gerada em Itaipú. e se você considerar toda a cascata vai dar mais do que isso, um percentual razoável da energia gerada no Brasil, vem das águas do Cerrado. Em alguns lugares os dados foram ainda mais interessantes. Na bacia do Parnaíba, por exemplo, também abastecida pelo Cerrado, mais de 100% da vazão que sai na foz veio do bioma.
Outro número alto é referente à vazão da bacia do Paraguai, quase 140%. O número ocorre porque abaixo desta bacia está o Pantanal, uma grande área alagada. É como se fosse um grande tanque de evaporação, então, passa mais água do Cerrado para o Pantanal do que do Pantanal para o rio Paraguai. O balanço hídrico do Pantanal, de uma forma global, é negativo. É como se ele consumisse grande parte da água que vem do Cerrado.
Ecodata Informa: Qual a importância da manutenção adequada do bioma Cerrado?
Jorge Werneck: Se o bioma continuar a ser impactado, a alteração provocará um efeito dominó. O ambiente é adaptado aos animais, às pessoas. A vida gira em torno disso e aí você consegue ver claramente qual a importância dos recursos hídricos que são gerados no Cerrado. Além da importância que tem para as pessoas que moram no bioma, abastecimento, irrigação, produção de alimento e geração de energia elétrica no País. A manutenção da região hidrográfica impacta praticamente todo o Brasil. Isso levanta a questão da necessidade de bom trato deste recurso.
Ecodata Informa: Que tipo de alterações o desmatamento provoca no ciclo hidrológico?
Jorge Werneck: Quando o desmatamento é feito para uma ocupação não muito adequada, que deixa o solo exposto, que não cobre rapidamente o solo, plantio de culturas de crescimento rápido, você acaba causando o secamento do solo. Estes impactos geralmente são notados em escala muito menor, em pequenas bacias. Mas em longo prazo, fazendo isso em muitos locais, é possível causar interferência. Em cidades e locais com grandes concentrações de pessoas, você normalmente vai encontrar problemas com a qualidade da água.
Quando se fala em agricultura, uma atividade que usa grandes áreas e, obviamente tem alguma coisa de poluição difusa, diferente da poluição concentrada (gerada pelos centros urbanos), temos um problema de conflito. Quando você utiliza os recursos hídricos sem considerar a capacidade de suporte das bacias hidrográficas, onde você implementa, por exemplo, sistemas de irrigação em áreas concentradas sem considerar a vazão disponível no rio, de forma adequada, por falta de informação ou problemas de gestão, ou por tudo isso somado, tem-se um conflito estabelecido.
Ecodata Informa: O que poderia falar sobre…
A gestão dos recursos hídricos no Brasil
Jorge Werneck: A gestão dos recursos hídricos brasileiros vem evoluindo de forma até rápida para que possamos minimizar problemas, para que façamos um ordenamento do uso do solo, compatível com a disponibilidade hídrica e os riscos ambientais envolvidos.
Saneamento
Jorge Werneck: A questão do saneamento é primordial. Muitas vezes as prefeituras e os governos não fazem os investimentos que deveriam. Há um passivo nisso, quer dizer, é preciso muito dinheiro para resolver problema de saneamento no país. Acho que a situação tem melhorado: saneamento, sistemas de drenagem, e as cidades menores já começam a verificar que isso é uma coisa séria, inclusive é uma questão de saúde, porque o ser humano, como elemento poluidor, contribui para a geração de lixo e de sujeira.
Saneamento é uma questão geral. O Distrito Federal, por exemplo, cresce quase 100 mil habitantes por ano. Nunca vi crescer tanto assim. Isso tudo, obviamente, reflete nos recursos hídricos, pois significa um lançamento de esgoto in natura. Para atender a necessidade crescente, os sistemas de tratamento tem que estar o tempo todo evoluindo e aumentando suas fontes de captação.
Agricultura
Jorge Werneck: Em termos de agricultura, o que chama atenção, hoje no Cerrado são os 60 milhões de hectares sob pastagem, e boa parte dessa pastagem tem algum grau de degradação. Isso acaba se refletindo como um problema: atrapalha infiltração, aumenta escoamento e erosões. Se você tem uma boa pastagem, não tem coisa melhor para uma cobertura de solo, porque ela realmente evita o impacto da gota, o escoamento e o carreamento de sedimentos. Mas quando você tem a pastagem em um certo grau de degradação, todos esses benefícios que poderiam ser gerados, acabam piorando a situação do que se tinha originalmente no Cerrado.
A entrada da cana no Cerrado
Jorge Werneck: Este é um assunto que tem chamado atenção. Estamos buscando gerar dados e informações para isso. Em muitos locais o regime de chuva não é suficiente para manter a produção, ou seja, você precisa de irrigação. Temos feito estudos para tentar quantificar o quanto se pode utilizar da água para isso. Estima-se que o Cerrado tenha o potencial de 10 milhões de hectares para serem irrigados e hoje, são irrigados aproximadamente 1 milhão de hectares. Ainda há um grande potencial, porém é isso deve ser feito de uma forma muito bem pensada.
Construção de hidrelétricas
Jorge Werneck: A construção de grandes barragens altera consideravelmente o regime dos rios. Dependendo de onde sejam construídas essas barragens e de como seja feita a operação e a gestão, você pode causar impactos maiores do que os benefícios que elas podem gerar. Isso de uma forma geral é o que eu acho sobre o desenvolvimento da agricultura e do setor elétrico.
Sobre o conhecimento
Jorge Werneck: Conhecimento sempre vai faltar. É impossível conhecermos completamente o que acontece na natureza, em todos os rios, em todos os locais. Precisamos continuar evoluindo nos estudos hidrológicos.
Boas práticas
Jorge Werneck: Uma coisa muito relevante é o zoneamento econômico e ecológico, desenvolvido para identificar o potencial de utilização e a capacidade de suporte das áreas dentro do Cerrado. Você precisa identificar se determinado local tem aptidão agrícola, por exemplo, porque se não tem, o custo para se trabalhar de forma adequada fica muito alto. Então, provavelmente, isso não vai acontecer. Precisamos identificar quais são as áreas mais apropriadas. Aí acho que está o papel do Estado: fornecer estrutura e informação para que isso ocorra de forma adequada.
O papel do Governo e da Sociedade Civil
Jorge Werneck: O papel do Estado é organizar toda a base de informações que ele mesmo precisa na definição do potencial de utilização dessas áreas. Não que ele tenha que fazer isso sozinho. As empresas que vão fazer os empreendimentos e que tem interesse nos empreendimentos já fazem estudos, alguns inclusive, muito bons. Muitas vezes esses estudos são colocados numa prateleira e quando vai ser feita uma nova ação na mesma região, é como se aquele estudo tivesse sido esquecido.
Acho que deve funcionar como uma parceria, não só na esfera pública. Penso que as ONGs entram nessa parceria para verificar e acompanhar de perto, tentando trazer um equilíbrio entre as forças econômicas e políticas com a vontade da sociedade.
Hoje, quando se fala em gestão de recursos hídricos, sabemos que os comitês de bacia são formados por representantes do Estado, usuários da água da bacia e organizações civis de recursos hídricos. É neste cenário que se aprovam os planos de bacia. Acho que a participação das ONGs de forma ativa dentro desses comitês, por exemplo, é uma forma muito interessante e legítima de participação. As ONGs têm o papel fundamental de fazer o link entre a sociedade e o Estado, mas também devem ser um difusor das decisões do Estado para a sociedade.
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